"A simplicidade é o selo da verdade"
Schopenhauer - filósofo alemão.
Estamos vivendo sob os ventos da mudança. Várias novas tecnologias aparecem ansiosas por ocupar o posto de grande revolução da cirurgia, que até agora ainda pertence à já adulta cirurgia laparoscópica. Qual a necessidade da mudança? Não precisa haver resposta. Somos assim, uma sociedade que busca constantemente o aprimoramento. Onde novas ciências surgem e do nada transformam nosso dia a dia. Onde ferramentas que há pouco não existiam se tornam rapidamente globalizadas, incontornáveis e insubstituíveis.
Nem todo grande produto se torna um campeão de vendas. Nem toda nova tecnologia, por mais promissora que possa parecer será utilizada em larga escala. Algumas características são fundamentais para o sucesso de um novo produto ou uma nova tecnologia em relação à concorrência:
1) Deve ser claro qual o problema que se dispõe a resolver.
2) Melhor desempenho e proporcionar mais benefício.
3) Menor custo e de fácil aquisição.
4) Simples instrução e manuseio.
5) Manutenção acessível e de baixo custo.
Vamos nos imaginar, nós cirurgiões, como consumidores, procurando decidir qual nova tecnologia/técnica iremos adotar: N.O.T.E.S. (Natural Orifice Translumenal Endoscopic Surgery), portal ou incisão única (single port ou single incision), ou minilaparoscopia (Mini). Vamos basear nossa decisão nos cinco quesitos acima descritos.
N.O.T.E.S., a cirurgia por orifícios naturais, um grande avanço, uma nova via de acesso, finalmente uma técnica cirúrgica “sem cicatriz”. Fruto de um enorme esforço e investimento da comunidade cirúrgica e da indústria, em cinco anos N.O.T.E.S. se tornou viável. Tecnicamente viável se realizada dentro de um ambiente quase irreal, com endoscópios totalmente e verdadeiramente esterilizáveis (lembremo-nos sempre da ameaça micobacteriose), com no mínimo dois cirurgiões/endoscopistas altamente capacitados trabalhando no mesmo campo operatório (realmente incrível) e para pacientes motivados, intrépidos, e que ainda não precisariam pagar nada a mais por tudo isso.
Este ambiente “utópico” já se tornou realidade em alguns poucos centros ao redor do mundo, mas certamente milhares de cirurgiões, para não dizer 99% de nós mesmos, não temos acesso. Ninguém mais questiona a capacidade que a tecnologia tem de entrar em nosso cotidiano, porém entraves financeiros têm sido a principal causa da derrocada de muitos projetos, por mais grandiosos e nobres que sejam. Sem dúvida, N.O.T.E.S. pelo menos tem favorecido o renascimento de conceitos filosóficos em novos acessos outrora esquecidos e também instigados a necessidade de se reinventar a laparoscopia.
De orifícios naturais passamos a cicatrizes naturais. As cirurgias feitas com acesso único pela cicatriz umbilical. “Porque não pensamos nisto antes?”, pode-se perguntar. Violar apenas nossa única cicatriz original tem um forte apelo, mesmo porque ela continua sendo a melhor porta de entrada da própria laparoscopia. A questão é transformar esta porta em um “portão”. E inserir-se nessa única incisão um único trocarte para múltiplas pinças (Single Port) ou múltiplos pequenos trocartes um ao lado do outro (Single Incision). Fortemente impulsionado pela indústria, o conceito de portal ou incisão única precisa ainda definir seu espaço. Neste ínterim, desfilam publicações de toda sorte de procedimentos, alguns verdadeiros exageros como apendicectomias, hernioplastias e talvez até mesmo as próprias colecistectomias. Para a retirada de peças cirúrgica maiores, porém, este novo conceito pode se mostrar verdadeiramente útil, como em nefrectomias, esplenectomias e colectomias.
A minilaparoscopia, neste contexto, veio para ficar. Na verdade ela voltou para ficar. A mesma Mini de Peter Goh e Michel Gagner da década de 1990,[i], [ii] que não se tornou popular porque era complicada. Impopular porque usavam óticas de vídeo muito finas, frágeis e de alto custo. Além disto, insistiam em clipar a artéria e ducto císticos pelo portal umbilical, o que obrigava a mudança da óptica e de seu posicionamento.[iii] Estigmatizou-se a Mini como cirurgia cara e complicada, sem maiores vantagens.
Entretanto, a Mini não foi totalmente abandonada e continuou a ser aperfeiçoada e praticada em alguns centros ao redor do mundo,[iv], [v], [vi] [vii] incluindo no Brasil a cidade de Recife.[viii] Dessa capital saíram provavelmente as maiores contribuições para a sobrevivência da técnica, que há poucos anos então com o ameaçador aparecimento do N.O.T.E.S. ressurgiu como alternativa mais simples e acessível. O Dr. Gustavo Carvalho, professor da Universidade Estadual de Pernambuco, fez o que a maior parte dos cirurgiões brasileiros melhor sabe fazer, ou seja, seguiu sua intuição para adaptar o que classicamente foi descrito, tornando a técnica original viável às nossas condições e realidade. Esta adaptação, no entanto foi cuidadosamente elaborada, e gradativamente testada. Tomando como exemplo a colecistectomia, ele usa desde o ano 2000, uma técnica padronizada. Uma ótica de 10mm, a mesma que todos usamos e conhecemos, no portal umbilical de sempre, porém para manter a técnica acessível e reprodutível, faz ligadura do ducto cístico com fio e cauteriza a artéria cística. Em 10 anos de experiência e com mais de 1000 pacientes operados, comprova a segurança desta sua audácia e tranqüiliza os incrédulos que podem considerar a cauterização da artéria cística um verdadeiro sacrilégio. viii Atualmente esta técnica de Mini é uma cirurgia-dia segura, com todas as vantagens da laparoscopia, altamente reprodutível e com enorme apelo estético.
Todos esses motivos nos levaram a iniciarmos há três anos nosso contato com a minilaparoscopia. Após um período de tutoramento com o Dr Gustavo Carvalho, começamos nossa experiência clínica com Mini realizando colecistectomias, passando para as hernioplastias inguinais totalmente extraperitoniais e então finalmente às simpatectomias lombares para tratamento da hiperidrose plantar. Destas duas últimas já foram operados 50 e 12 pacientes, respectivamente. Nesse período também foram realizadas fundoplicaturas para tratamento da doença do refluxo gastroesofágico auxiliadas por instrumentais Mini. Até o momento 12 pacientes não obesos foram operados com sucesso utilizando-se 3 portais de 3 mm, um portal de 5 mm para a inserção de porta-agulhas e um portal de 10 mm na cicatriz umbilical para inserção do laparoscópio. Em dezembro de 2009 organizamos o primeiro Workshop brasileiro dedicado à Mini e desde então a técnica encontra-se inserida no currículo do curso de Pós-graduação em Cirurgia Minimamente Invasiva da Universidade Positivo, em Curitiba, no Paraná. No decorrer dessa experiência o que mais nos chamou a atenção foi a sensação de estarmos realizando as cirurgias com gestos mais precisos, provavelmente em menor tempo, e obviamente a superioridade estética, quando comparamos com a laparoscopia convencional. Além disso, notamos que Mini foi facilmente aprendida e incorporada à nossa rotina (em nosso caso necessitamos de aproximadamente cinco procedimentos (colecistectomia) para nos consideramos confortáveis com a técnica).
Pequenos instrumentos ocupam pouco espaço. Em vídeo cirurgia, nossa visão periférica é restrita pelo campo visual limitado da ótica. Quanto menos espaço nossos instrumentais ocuparem, melhor o campo de visão. Os instrumentais da Mini combinam com o conceito da amplificação da imagem produzida pelas óticas. O aumento de até 12 vezes proporcionado pelas nossas câmaras de vídeo encontram nas pinças convencionais uma parceria inadequada. Pinças de 5mm quando vistas em maior aumento em campo de visão restrito, ocupam precioso espaço além de se tornarem grosseiras nas situações de maior delicadeza como em uma anastomose de via biliar, ressecção de gânglio simpático aderido na veia cava ou mesmo na dissecção do ducto deferente do saco herniário. Isto é especialmente importante nas cirurgias retroperitoneais, onde naturalmente o espaço é exíguo e movimentos inadvertidos podem provocar perfurações no peritônio e com isto diminuí-lo ainda mais. Cirurgias mais delicadas, talvez até devam ser feitas por minilaparoscopia. Ao contrário do que ocorre com outros novos métodos, na Mini se aumenta a destreza, a delicadeza e a precisão.
“Precisão cirúrgica” parece que sempre fomos merecedores desta deferência. Será que vamos arriscar abrir mão daquilo que a sociedade nos considera mais sagrado?
Os atuais trocartes de Mini, ao contrário dos seus antecessores da década de 90, não têm vedação, não têm borracha. São caracterizados por apresentarem atrito quase desprezível, portanto, necessitam de menos força para movimentar uma pinça em seu interior.[ix] O conseqüente aumento de escape e consumo de gás carbônico, outrora um dos principais motivos de crítica e sem conseqüências na prática do procedimento, vêm sendo contornados com sucesso por esses novos modelos de trocarteres.ix As limitações técnicas da Mini atualmente restringem-se ao empenho da indústria em confeccionar instrumentais (principalmente porta-agulhas) mais resistentes e com melhor desempenho. Sem dúvida os instrumentais de Mini são mais delicados e necessitam de maior manutenção em comparação com a laparoscopia.
E voltemos a falar de acessos. Únicos/maiores ou múltiplos/menores? Parece até que estamos falando da antiga rixa entre cirurgia convencional com a laparoscopia tradicional. Utilizando-se modelos teóricos matemáticos para se medir o volume de injúria e tensão da incisão parietal na comparação entre Mini e single port, a Mini se sobressai por empregar vários diminutos acessos. Conseqüentemente, os benefícios da Mini seriam menor volume total de injúria parietal, menor área total de tensão nas incisões e menor dor somática.[x], [xi] Provavelmente hoje os instrumentais de Mini são os únicos a se considerar como onipresentes nas técnicas atuais de cirurgia endoscópica. Eles são utilizados para viabilizar os diversos N.O.T.E.S. e single port ditos híbridos, isto é, assistidos por instrumentos inseridos na parede abdominal. Algumas técnicas híbridas são em verdade técnicas Mini assistidos por single port ou N.O.T.E.S.[xii] Lembremos ainda que a maioria dos procedimentos N.O.T.E.S. realizados hoje em humanos também são híbridos[xiii], e que milhares deles utilizam instrumentos Mini.
Novos conceitos são fundamentais para o desenvolvimento da cirurgia e por vezes encontram seu espaço em áreas diferentes das originalmente programadas. Nunca o cirurgião comum brasileiro se viu com tantas opções de técnicas cirúrgicas em tão pouco tempo. Porém para esse cirurgião, forjado na nossa dura realidade profissional e preocupado em melhorar a qualidade do que faz no dia a dia, o primeiro passo na evolução natural da cirurgia laparoscópica parece ser o refinamento da técnica que ele já utiliza. Nesse caso, “simplesmente” diminuindo-se a espessura de seu instrumental, e assim permitindo maior precisão e menores incisões. Embora evidências indiquem que a prática da Mini exija treinamento e destreza do cirurgião[xiv], ela é a evolução mais simples, mais lógica, menos glamorosa, com menor apelo de marketing ou comercial, e também por tudo isto muito mais interessante para o nosso tempo. Baseados em uma frase creditada a Leonardo Da Vinci, poderíamos nos atrever a afirmar que por sua simplicidade, a Mini pode ser considerada hoje a mais sofisticada evolução da cirurgia laparoscópica.
Ao final dessa nossa análise, podemos concluir que a técnica laparoscópica clássica, fundamentada na triangulação apropriada de instrumentos, será difícil de ser superada a curto prazo, considerando-se a somatória dos nossos cinco quesitos citados acima. Aguardemos, então, o surgimento de instrumentais oriundos da fusão do single port com N.O.T.E.S. aliados à robótica e procedimentos cirúrgicos assistidos por computador.[xv] Possivelmente a partir deles, não de procedimentos utilizando instrumentos convencionais emprestados da laparoscopia e endoscopia flexível, construiremos o nosso verdadeiro padrão de cirurgia para as próximas gerações. Nesse universo de múltiplas opções técnicas, a melhor conduta é continuar a priorizar a saúde de nossos pacientes acima de quaisquer outros interesses.
Enquanto isso, a vida segue e aceitar o que parece óbvio pode ser mais difícil do que venerar o esdrúxulo. Principalmente por estarmos acostumados a importar conceitos de países mais desenvolvidos. Temos pela frente mais uma mudança de paradigma. Valorizarmos, quer seja individualmente ou como Sociedade de Cirurgia, a superioridade de um conceito desenvolvido e adaptado a nossa realidade por um brasileiro, que hoje vem sendo reconhecido internacionalmente como o maior responsável pelo resgate da minilaparoscopia. Mais um sinal para acreditarmos que o Brasil está mudando. Agora nós é que precisamos acreditar nesta mudança.
Instituto Jacques Perissat e Curso de Pós-graduação em Cirurgia Minimamente Invasiva, Universidade Positivo | Curitiba, Paraná - Brasil.
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